A Mulher de Todos

Via: http://www.contracampo.com.br/38/sganzerla.htm

Texto originalmente publicado no Jornal do Brasil de 20 de fevereiro de 1970, na seção O filme em questão, junto com críticas de Alex Viany, José Carlos Avellar, José Wolf, Sérgio Augusto e Valério Andrade.

Feliz ou infelizmente, A Mulher de Todos é mais inteligente do que os críticos. Esse pecado ninguém perdoa. No entanto, é tão fácil fazer filmes mais inteligentes do que as opiniões da crítica.

Compreendo perfeitamente que vocês não entendam. Ninguém precisa concordar comigo. Faz parte do jogo: eu proclamo o óbvio e poucos o percebem. Disso, sou o primeiro a saber, evidentemente. A culpa não é minha nem dos piedosos críticos sul-americanos, mas simplesmente dos preconceitos culturalistas que esta década se encarregará de destruir. Até lá, a burrice é gratuita.

Meus próximos filmecos serão exatamente como A Mulher de Todos, nem piores nem melhores, atendendo ao consumo interno do subdesenvolvimento. Tentarei, daqui por diante, chupar cada fotograma da minha própria obra, porque agora não me interessa o pasticho: quero o auto pasticho. Continuo sendo o maior macaco de auditório da Rádio Nacional e da Mayrink Veiga.

Jamais transmitirei idéias limpas, discursos eloqüentes ou imagens plásticas diante do lixo — apenas revelarei, através do som livre e do ritmo fúnebre, nossa condição de colonizados mal comportados. Dentro do lixo, é preciso ser radical. Daí o amor pelo cinema brasileiro tal como ele é: mal feito, pretensioso e sem pretensões e ilusões estéticas. Esmagad e explorado, o colonizado só pode inventar seu próprio sufocamento: o grito do protesto vem da mise en scène abortada. Ninguém pensa de forma limpa e estética de barriga vazia.

Continuo realizando um cinema subdesenvolvido por condição e vocação, bárbaro e nosso, anticulturaltsta, buscando aquilo que o povo brasileiro espera de nós desde o tempo da chanchada: fazer do cinema brasileiro o pior cinema do mundo! Ah, como isso seria maravilhoso e sensato!

Faz parte do jogo inglório: a critica brasileira repudia toda criação marginal (Júlio Bressane, Neville d’Almeida, um filme como Viagem ao Fim do Mundo, de Fernando Campos), promovendo as manifestações oficiais do cinema novo e do expressionismo caipira. Principalmente dessa velha escola preocupada em falsificar nossa realidade com academicismos medíocres e orçamentos astronômicos.

Enfim, meus filmes são antes de tudo óbvias autocrítlcas que os intelectuais jamais poderão entender: meus filmes são seus próprios defeitos: meus filmes são aquilo que a produção não conseguiu: meus filmes são exata e concretamente aquilo que nunca poderei filmar porque, como todo o mundo sabe, o cinema brasileiro é o máximo porque é o impossível.

ROGÉRIO SGANZERLA

O corpo poético da atriz/autora Helena Ignez em ‘A Mulher de Todos’
Tatiana Trad
via: O corpo poético da atriz/autora Helena Ignez em ‘A Mulher de Todos’ | Revista Sísifo (revistasisifo.com)

Em A Mulher de Todos, a atuação de Helena Ignez é parte integrante da construção da narrativa fílmica; a performance, ela mesma, é a força do filme. O texto lido, ganha uma forma única na voz e no corpo da atriz. Rogério Sganzerla, influenciado por Bergman e Godard, acreditava na liberdade de criação do ator/atriz e tinha em Helena Ignez o corpo preparado para cada expressão requerida pela personagem. O aspecto visual da atriz se torna a única forma possível de existência para Angela Carne e Osso. Jovem, radicalmente loira em terra tupiniquim, corpo bonito, forte e sensual. Poderia ser apenas uma mulher sedutora, mas era muito mais, era “a mulher de todos”.

Helena Ignez, a atriz e a autora encontram-se polarizadas em extremos corporais no que diz respeito a postura da atriz frente à câmera. Se de um lado, temos a imobilidade total ou parcial quando aparecem as figuras da pose e da sedução; do outro, temos a mobilidade excessiva e frenética do satélite e da histeria. Neste caso, o satélite é uma das funções desempenhadas pela personagem, que às vezes parece orbitar em torno dos demais personagens, onde a movimentação de Angela Carne e Osso em algumas cenas sugere um estado de confusão ao espectador. A aproximação aliada ao distanciamento brecthiano sugere uma atuação bastante explosiva. 

A questão da pose, do “aparecer” sobre o “parecer”, é um elemento presente na narrativa do filme, principalmente nos filmes da produtora Belair, onde ao invés de buscar a verossimilhança, os atores simplesmente aparecem diante das câmeras (o “aparecer”, o “mostrar- se”, o “estar lá”) , acentuando o deboche típico do Cinema Marginal.

   Teóricas feministas do cinema como Laura Mulvey ou Teresa de Lauretis acreditavam que o cinema independente poderia ser o espaço de subversão do papel feminino comumente representado.

A Mulher de Todos é um filme que merece destaque por sua originalidade e pelas inovações da interpretação proposta por Helena Ignez, inclusive no comportamento da personagem. O filme causou um grande impacto no meio intelectual e levou diversos cineastas a refletirem. Para Jean Claude Bernardet[1]:.

A mulher de todos é um ato de liberdade quase total, como se o Sganzerla tivesse se libertado dessa questão de desconstrução, de paródia e se dirigir ai pra uma forma muito surpreendente de narrativa, de personagens, de interpretação, de maneira de dizer o texto, de montagem, de absolutamente tudo. No Bandido, e mais ainda na Mulher de Todos, Helena Ignez rompe absolutamente com essa forma de representação realista. Eu acho que ela foi realmente muito audaciosa. Uma das inovações da Mulher de Todos é a forma de trabalho da Helena Ignez como atriz que se apoia muito mais na pessoa dela, na competência dela, no potencial performático dela do que na composição da personagem. 

Como Bernadet aponta acima, um fator determinante que possibilitou rupturas na forma de representar é a própria capacidade de Helena Ignez e o seu potencial de encenação. Sua bagagem pessoal aliada a seu potencial criativo, sobrepõe-se a rigidez de uma composição prévia da personagem.

Sob o ponto de vista do feminismo, Bernadet acrescenta que naquela época mulheres com caminhos muito diversos passam a fazer afirmações surpreendentes. Para ele, não se pode pensar em Helena Ignez sem pensar em Leila Diniz grávida, pois ambas são contemporâneas e não são fatos isolados. Surge a pílula, despontam colunas semanais com artigos sobre a libertação da mulher, comportamento e etc. Para Bernardet, dentro deste contexto de libertação e ruptura, Helena Ignez é a atriz de sua época que foi mais longe, pois ao reunir esses elementos de empoderamento feminino ao nível da interpretação diante da câmera, tornou possível o surgimento de Angela Carne e Osso, por exemplo. Jean Claude Bernardet considera “A Mulher de Todos” um filme inovador e a performance da atriz Helena Ignez única no cinema brasileiro. 

    A Mulher de Todos trouxe avanços para o cinema brasileiro em diversos aspectos. Existe um consenso entre autores/críticos do cinema brasileiro quanto à importância fundamental do sujeito Helena Ignez na atuação e co-criação da personagem, a performance de Helena Ignez é o elemento de força da personagem.

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