Nietzsche online – Paulo Ghiraldelli Jr.

O fantástico da Internet é que ela permite que as narrativas sobre os acontecimentos se deem em concomitância com estes – ou quase isso.  Guardada as devidas proporções de tempo, nos anos de 1870 Nietzsche observou essa característica dos “tempos modernos”, referindo-se especificamente aos jornais. Ele comentou que nem bem uma guerra havia produzido seus primeiros mortos e os cadáveres apareciam nos jornais como história. E lembrou, é claro que em forma de chiste, que os periódicos não poderiam dizer a verdade porque eles sempre tinham mais ou menos o mesmo número de páginas, ao passo que o número de acontecimentos sempre estaria variando. Nietzsche escreveu isso em aforismos e, também, em um texto que os scholars qualificam como “de juventude”, uma das Extemporâneas.

Naquela época, Nietzsche avaliou que tal prática acentuava ainda mais um clima de época: a predominância do historicismo. Nada teria mais presente. Tudo ganharia uma conotação histórica tão logo viesse a ocorrer. Aos poucos, então, haveria um número cada vez maior de pessoas predispostas a antes viver a história de outros, como espectadores, que viver suas próprias vidas. O “mundo da hegemonia das imagens (instantâneas)”, como é possível denominar o nosso mundo hoje, foi tomado por Nietzsche, há mais de cem anos, como uma verdadeira vítima do historicismo e, enfim, da “cultura filisteia”

A regra de conseguir o “eu estava lá” só vale se eu registro no celular o evento. Mas, antes que registrar, o que preciso fazer é disponibilizar a imagem na Internet imediatamente, para que o mundo diga que “eu estou lá”. Caso o mundo não possa, instantaneamente, me ver “lá”, eu mesmo não saberei onde estou. Então, o celular em punho é minha atividade. Posso estar num baile, dançando com a homenageada (ou uma moça qualquer), mas um dos braços não está nela e, sim, esticado, servindo de apoio para o celular que nos transmite dançando para o mundo (ou quase dançando, pois é estranho dançar com um braço esticado). Isso sem contar as inúmeras cenas de sexo que são jogadas instantaneamente para a Internet, cenas que acabam não raro ocorrendo com dificuldade, caso eu não pare de acertar o celular, tentando achar o meu melhor ângulo de coito.

Walter Benjamin escreveu que os que voltavam da Primeira Guerra Mundial não tinham histórias para contar, diferente dos que haviam voltado das guerras anteriores. A Primeira Guerra havia sido a guerra das máquinas, da morte sem glória, do puro extermínio, do desaparecimento até mesmo dos restos mortais. A Primeira Guerra já foi uma guerra onde a propaganda e o jornais, criando a história no momento mesmo de sua ocorrência, ocupou o espaço das histórias antes que elas pudessem ser contadas pelos que seriam seus protagonistas. E elas não foram contadas, depois que os soldados voltaram. Eles haviam tido o experimento da guerra, mas não a experiência da guerra, não a vivência. Nossas guerras atuais mostram isso. Quem volta não conta a história, pois o que se faz é ligar o celular de modo a deixar que, em qualquer lugar, cada um possa ver o horror instantâneo e, portanto, se acostumar com todo e qualquer horror.

Walter Benjamin foi o primeiro a ver que esse tipo de mundo era aquele de seu tempo, em que uma foto que apresenta horrores pode ser vista por alguém que, enfim, exclama: “nossa, que linda foto”. O horror não mais choca, pois tudo tem um caráter estético, tudo é para informar e ser objeto de deleite ou de julgamento moral apressado – uma época em que a denúncia do preconceito só é regra porque o preconceito é o que há de mais atual. Nada é vivo, tudo é só imagem. Nada é para ocorrer, tudo é para ver. Um clima de hiperhistoricismo se consubstancia por meio de um clima de abundância jornalística. Um jornalismo sem jornalistas, só com repórteres – todos os nós. Conectadíssimos!

2011 Paulo Ghiraldelli Jr. Filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

http://ghiraldelli.pro.br/2011/04/29/nietzsche-online/

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