No Brasil, as transformações sempre resultaram do deslocamento da função hegemônica de uma para outra fração das classes dominantes, sendo que estas classes, em seu conjunto, nunca desempenharam uma função hegemônica diante das massas populares. Sempre delegaram ao Estado – aos militares ou aos burocratas –, ao qual coube a função de “controlar” e, de acordo com as necessidades, reprimir as massas subalternas. Esta foi a forma encontrada pela burguesia brasileira para fazer a transição para o capitalismo, o modelo de “revolução passiva”.
O Estado brasileiro e a “revolução passiva”
O conceito gramsciano de “revolução passiva” aplicado ao caso brasileiro pressupõe o entendimento acerca do fortalecimento do Estado em favor das forças hegemônicas e a prática do transformismo como modalidade de desenvolvimento histórico que exclui as massas populares desse processo.
Assim sendo, a modernização capitalista brasileira – industrialização, urbanização e estrutura social complexa – foi implementada pelo Estado. Não houve uma “revolução burguesa”, este fato aconteceu mesmo com o grande latifúndio e a dependência do capital imperialista.
A propriedade latifundiária transformou-se, rapidamente, em empresa agrária e o capital estrangeiro no acelerador da industrialização. O povo brasileiro não tomou parte nessa empreitada, melhor expressando, os trabalhadores do campo e os da cidade não tiveram participação neste processo, haja vista que não existiu uma burguesia revolucionária no País. A transformação capitalista sucedeu a partir de acordos entre frações das classes que dominavam economicamente, à exclusão dos movimentos populares, do emprego dos aparelhos repressivos e da intervenção econômica do Estado.
Em todos os momentos importantes da história do Brasil, ligados ou não aos períodos de transição, para as fases capitalistas, foram encontradas formas de excluir o povo e de as elites se recomporem ou fazerem alianças para continuar no poder, ou seja, de fazer uma “revolução passiva”.
Dessa forma, a leitura gramsciana sobre a “revolução passiva” é fundamental para o entendimento do papel do Estado brasileiro no desenvolvimento econômico, político e social. Destacaremos, inicialmente, o período varguista e a culminância com a instalação da ditadura em 1937. Esta é uma reação às tentativas de organização dos movimentos populares, que se inicia em 1922, ano em que foi fundado o Partido Comunista Brasileiro – PCB e eclodiu a primeira manifestação armada militar comandada pelos tenentes.
Nesse período, o movimento operário levantava a bandeira dos direitos civis e sociais, enquanto as camadas urbanas emergentes lutavam pelo direito uma participação maior na vida política do País. Esses movimentos, que faziam pressão de “baixo para cima”, fizeram com que as oligarquias agrárias dominantes se reorganizassem, costurassem alianças, ligadas à produção para o mercado interno, assumindo o controle da Revolução de 1930.
A vitória da Revolução de 1930 possibilitou a constituição de um novo bloco de poder, no qual a fração oligarquia vinculada a agricultura de exportação foi posta numa posição inferior, ao mesmo tempo em que se tentava “cooptar a ala moderada da liderança político-militar das camadas médias (os tenentes)”. (COUTINHO, 1985, P.04). O estilo elitista desse novo grupo, no entanto, fazia com que os setores populares continuassem a margem do poder. Eles ainda não estavam; eram representados pelo frágil Partido Comunista e por um pequeno grupo de tenentes de esquerda que não haviam participado da Revolução. (COUTINHO, 1985).
Diante dessa situação, os comunistas e os tenentes de esquerda, tentaram protestar. Organizaram o levante comunista de 1935 – a chamada Intentona – transformado num desastre e reprimido, rapidamente, pelo governo, tornando-se o principal motivo para instauração da ditadura Vargas.
A ditadura Vargas, com seu caráter repressivo e ideológico de tipo fascista, não poupou os comunistas. Nesse período, todavia, também chamado de “Estado Novo”, alavancou-se uma acelerada industrialização do País, contando com o apoio industrial da burguesia nacional e internacional e de parte da camada militar. Para acalmar os anseios das camadas populares e atender as suas reivindicações, Vargas promulgou um conjunto de leis de proteção ao trabalho (salário mínimo, férias pagas, direito à aposentadoria, licença-maternidade etc.), porém impôs uma legislação sindical corporativa, de inspiração fascista, que atrelava os sindicatos ao aparelho estatal e liquidava com a autonomia. A ditadura Vargas se enquadrava conceito de “revolução passiva” ou “revolução-restauração”.
Do período que compreende de 1937 a 1945, ressaltamos o início de um fenômeno que se incorporou à política brasileira, o chamado “populismo” – modalidade de legitimação carismática, mas que se desenvolveu plenamente o período liberal-democrático, que se estendeu de 1945 a 1964, retomado novamente nos anos 2000, mas precisamente no ano de 2002, com o governo de Luís Inácio Lula da Silva. O populismo deve ser interpretado como tentativa de incorporar ao bloco de poder, em posição subalterna, os trabalhadores do campo e da cidade, mediante a concessão dos direitos, benefícios sociais, ou seja, vantagens econômicas. Aqui utilizaremos o conceito gramsciano de transformismo para discutir o período de 1945 a 1964.
A ação transformista utilizada pela burguesia, no período de 1945 a 1964, não teve êxito, pois encontrou forte resistência nos setores mais combativos da classe trabalhadora, mas a causa principal foi a impossibilidade de os governos garantirem ao conjunto de trabalhadores, em razão das fortes crises econômicas, as condições mínimas exigidas para o funcionamento do pacto populista. (COUTINHO, 1985).
O sucesso do “populismo” neste período pode ser encontrado no segundo governo de Getúlio Vargas e no de Juscelino Kubitschek e este êxito decorreu do amplo consenso conquistado pela política nacional desenvolvimentista, caracterizada por acelerados processos de industrialização com base na substituição de importações.
Fora do pacto populista estavam os assalariados agrícolas e os camponeses, que continuavam sem seus direitos sociais e trabalhistas e – ainda eram analfabetos – do direito do voto. Esta exclusão tornava possível a manutenção, no bloco de poder, da velha oligarquia latifundiária e servia também à burguesia industrial, pois ampliava significativamente o exército industrial de reserva. Desta forma, pressionava para baixo o valor dos salários dos trabalhadores urbanos. (COUTINHO, 1985).
O período da ditadura militar instituída no Brasil a partir de 1964 pode ser compreendido quando Gramsci exprime que o fascismo é um tipo de “revolução passiva” por via do Estado, que pôs em prática profundas modificações, com a finalidade de não mexer nos lucros individuais e dos grupos instalados no poder e desenvolver a indústria, tendo como dirigentes as classes tradicionais.
O regime ditatorial militar de 1964 não pode ser considerado como um regime fascista de modelo “clássico”, como foi o fascismo italiano, mas os objetivos de política econômica guardam fortes semelhanças, que podemos assim inventariar:
• desenvolvimento intenso das forças produtivas, por via de
intervenção do Estado, com o claro objetivo de favorecer e consolidar a
expansão do capitalismo monopolista;
• transformação da estrutura agrária, tornando-a
predominantemente capitalista, mesmo conservando o latifúndio como
eixo central;
• os militares, na qualidade de tecnocratas que se
apoderaram do aparelho estatal, controlaram e limitaram a ação do
capital privado, submetendo os interesses dos muitos capitais ao capital
em seu conjunto, mas mantiveram e reforçaram o lucro privado e
conservaram o poder das classes dominantes tradicionais, seja a
burguesia industrial e financeira (nacional e internacional), sejam os
latifundiários que se tornaram paulatinamente cada vez mais
capitalistas.
O regime militar conquistou, nos primeiros momentos, amplo consenso entre setores das camadas médias, conseguindo isso a partir do instante em que se impôs como protagonista da modernização capitalista brasileira, mesmo que esta tenha conservado elementos de “atraso”, despertando esperanças e criando expectativas nos grupos sociais, fornecendo algumas respostas aos estratos conservadores da sociedade brasileira.
O Estado brasileiro, que sempre esteve na linha de frente das grandes transformações capitalistas, ou seja, foi com freqüência o protagonista da “revolução passiva”, não se utiliza apenas da coerção, pois também se louva do consenso. Gramsci, em seus estudos, indicou este fato e também o modo pelo qual se obtém esse consenso no caso dos processos de transição “pelo alto”, a burguesia faz a cooptação das frações rivais das próprias classes dominantes – assimilação pelo bloco de poder – e chega até mesmo a cooptar setores inteiros das classes subalternas.
Gramsci elenca na história italiana dois tipos de transformismo. O primeiro ocorreu de 1860 a 1900, denominado de transformismo “molecular”, no âmbito do qual personalidades políticas singulares, orientadas pelos partidos democráticos de oposição, se incorporavam individualmente à ‘classe política’ conservadora-moderna – caracterizada pela aversão a qualquer intervenção das massas populares na vida estatal, a qualquer reforma orgânica que substitua o domínio ditatorial por uma hegemonia. O outro foi iniciado em 1900, transformismo de grupos radicais, que passaram para o campo moderado.
Os dois tipos de transformismo permeiam a história brasileira. Podemos dizer que o tipo “molecular” teve sempre mais freqüência, utilizando como incorporação ao bloco de poder, políticos de oposição, prática que se encontra arraigada desde o Brasil-Império se estendendo até os dias atuais.
No período da história brasileira que se inicia em 2002, tivemos um caso típico de transformismo de grupos ou classes sociais de oposição. Este representa a vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores – PT, da candidatura presidencial de Luís Inácio Lula da Silva, depois de três sucessivas derrotas.
O PT foi criado em 1980, diante da crise política da “abertura” da ditadura militar como resposta do movimento operário e camponês, e em decorrência da greve centrada nas montadoras do ABC paulista, tendo as principais lideranças desse movimento grevista se transformado nas lideranças do próprio PT. O líder político e, presidente eleito, Lula da Silva, em 2002, nasceu nesse contexto.
Após a primeira derrota do PT em 1989, este começa a ser cooptado pela burguesia, surgem as alianças para tornar o PT “aceitável” e confiável para o empresariado nacional, internacional, Fundo Monetário Internacional – FMI e as “classes médias”. O PT chega, então, ao governo com o apoio da “fração reacionária da burguesia brasileira, boa parte de seus políticos tradicionais e uma vasta legião de arrivistas”. (COGGIOLA, 2004, p 12).
A vitória do PT, em 2002, decorreu da concretização do processo de cooptação geral deste grupo, haja vista que direção do Partido se comprometeu com o superávit primário, pagamento da dívida externa, total submissão ao Fundo Monetário Internacional – FMI e com as leis de “responsabilidade fiscal”, agradando o capital nacional e internacional.
O PT e Lula da Silva se consolidavam, no imaginário popular, por serem considerados representantes dos interesses da classe operária, dos camponeses e dos pobres em geral. Na verdade, este governo acalma os setores populares do Brasil, com medidas populistas, focalizadas, mas, sobretudo, defende os interesses capitalistas, “colaboração de classes”, nas palavras de Coggiola (2004), “criar um fator de contenção da emergência do movimento operário e camponês da América Latina” (P.31).
No Brasil o transformismo “molecular ” desempenhou papel negativo, mas decisivo, na vida cultural do País, pois com a incorporação de significativas parcelas dos intelectuais, pelo Estado, que representavam os valores das classes populares; enfraquecia sempre qualquer movimento opositor às camadas dominantes .
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de: Antonia de Abreu Sousa – CONCEITO GRAMSCIANO DE “REVOLUÇÃO PASSIVA” E O ESTADO BRASILEIRO.
Doutora em Educação Brasileira na Universidade Federal do Ceará; pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Trabalho e Qualificação Profissional – LABOR; pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Educação Profissional – NUPEP; professora no Instituto Federal de Educação,Ciência e Tecnologia do Ceará.Email: tônia_abreu@hotmail.com.